Poema do Velho Barqueiro

De Maurício Pereira

 

Em homenagem a Francisco Alves de Andrade e Castro, respeitado intelectual cearense que em novembro próximo, ao vigásimo primeiro dia, completaria um século de vida.

Aqui deixo minha homenagem com o poema: Poema do Velho Barqueiro, narrado pelo próprio autor em meados da década de 1980.

Poema do Velho Barqueiro

era uma vez um caminheiro

vindo de longes terras

de paragens remotas

em busca

de uma cidade misteriosa

 

o caminheiro largou-se

pelo mundo

certo de que havia

uma cidade dos sonhos

 

e palmilhou a terra

por ínvios caminhos

 

rondou montes

transpôs vales

eis que avistou

a esperançada cidade

 

estava ali

bem próximo

mas passava

entre ela e o caminheiro

um extenso e caudaloso rio

tão largo

que os simples braços humanos

não podiam atravessar

 

postou-se diante das águas

taciturno e infeliz

muitas horas a esperar

e divisou na corrente

um barco

remado por linda mulher

vestida de branco

 

barqueira da fé

leva-me à cidade dos sonhos

amigo

hoje é domingo

volto ao templo a orar

 

o caminheiro quedou silencioso

fitando as águas correntes

até que seus olhos viram

um outro barco

trazido por uma jovem

vestida de verde

 

barqueira da esperança

leva-me ao outro lado do rio

 

amigo

outros me esperam

e desde ontem

sigo à sua procura

 

o pobre homem volveu a sofrer

horas a fio

até que a tardinha

quase ao sol pôr

viu surgir nas águas

um menino de águas volantes

em barco ligeiro

 

quem é você criança?

eu sou o amor

 

barqueiro do amor

leva-me à cidade dos sonhos

 

ando atrás

de um casal de namorados

que trouxe para divertirem-se

na floresta

e desapareceu

 

anoitecia

as águas rolavam

em seu marulho dormente

estrelas luziam no céu

e o caminheiro adormeceu

 

acordou à meia-noite

rugidos enormes

e um barco sombrio

trazia vulto

de torvo aspecto

 

uma voz do alto lhe disse

eis o barqueiro do ódio

 

afastou-se correndo

e não dormiu

o resto da noite

com estranho pavor

 

veio a madrugada

os pássaros cantavam

ao amanhecer

 

o sol nascente

mostrou-lhe um novo barco

 

desta vez

o barqueiro era um velhinho

de barbas tão brancas

que pareciam de neve

os seus cabelos

 

e o caminheiro falou

passei o dia

e toda a noite

sem haver barqueiro

que me levasse

à outra margem do rio

 

atravessaram as águas

silenciosamente

 

ao abordar a margem

frente à cidade

o caminheiro indagou

 

meu velho barqueiro

quem é o senhor?

 

eu sou o tempo

respondeu-lhe o barqueiro

 

o caminheiro desculpou-se

beijou agradecido

as mãos generosas do tempo

tomou a mochila

e rumou para a cidade

misteriosa

 

o sol luzia

sobre o zimbório dos templos

doirava o piso das ruas

refletindo ouro e prata

os sinos tocavam festivos

e músicas de todos os ritmos

com todas as harmonias

cantavam para o universo

 

o tempo vai

o tempo vem

o tempo leva

o tempo traz

o tempo lembra

o tempo esquece

o tempo é um barqueiro

que nos leva

ao outro lado do rio

à cidade dos sonhos

onde todos se entendem

onde todos se querem

e a cidade dos sonhos

está sempre em festas

 

A seguir, uma breve biografia de Francisco Alves de Andrade e Castro

Este eminente intelectual, Francisco Alves de Andrade e Castro, nasceu no sítio Recreio (Mombaça-CE), em 21 de novembro de 1913, e morreu em Fortaleza (CE), aos 6 de outubro de 2001. Foram seus pais: José Alves de Castro e Raimunda Paes de Andrade.

Engenheiro Agrônomo pela Escola de Agronomia do Ceará (1938) e Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Ceará (1942), realizou importante carreira pública, ocupando cargos e desempenhando missões estaduais e federais. Fazendeiro e destacado ruralista, foi professor catedrático de Zootecnia Especial da Escola de Agronomia do Ceará, professor visitante e Doutor Honoris Causa da Escola Superior de Agricultura de Mossoró (RN) e Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará (1983), agraciado com a medalha e diploma do Mérito Agronômico do Brasil (1971).

Ingressou como sócio na Academia Cearense de Letras, em 21 de novembro de 1970 e no Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), com posse em 30 de março de 1953.

Deixou grande bibliografia sobre recursos naturais, agricultura ecológica, secas e sociologia rural; os textos sobre a reforma agrária no Polígono das Secas tiveram repercussão nacional. Toda a sua obra mostra permanente preocupação com a proteção e conservação da natureza, sendo mesmo difícil indicar trabalhos de maior importância naturalista.

(Fonte: PAIVA, Melquíades Pinto. Os naturalistas da Academia Cearense de Letras. Revista da Academia Cearense de Letras, Fortaleza, v. 70, p. 76-89, 2009.)

Em seguida, o trecho de Natércia Campos que ocupou a cadeira Nº6 da Academia Cearense de Letras ocupada anteriormente por Francisco Alves de Andrade e Castro:

“(…)

Não conheci Francisco Alves de Andrade e Castro, o titular que me precedeu na cadeira Nº 6, mas ao debruçar-me sobre sua história de vida, seus livros escritos, sua sensibilidade poética, ficou-me a singular saudade de não ter usufruído do seu convívio. Creio que seríamos amigos por várias razões, dentre elas seu agudo humanismo.

Afirmava Francisco Alves de Andrade e Castro: “Devo aos meus professores do Seminário, meus conhecimentos sociológicos, filosóficos e humanismo cristão”.

Nasceu ele em 21 de novembro de 1913, nos sertões de Mombaça, do Ceará, no Sítio Recreio, de chão duro e de solos vermelhos. Seus pais foram José Alves de Castro e Raimunda Paes de Castro. Seus primeiros estudos, o curso primário, fez em sua cidade juntamente com seu irmão, a quem tanto queria e admirava, Paes de Andrade. Saiu de sua terra para cursar o secundário no Seminário Diocesano de Fortaleza.

O interesse pela literatura ampliou-se nesses anos de estudos no velho Seminário da Prainha. Ainda seminarista, em hora dedicada à meditação, saiu em silêncio da sala e subiu à torre da Igreja do Seminário. Seu olhar pousou no Farol do Mucuripe e escreveu seu primeiro poema, aos 20 anos. Nosso poeta Artur Eduardo Benevides o incluiu na sua “Antologia de Poetas Bissextos do Ceará”.

No ano em que nasci, diplomou-se Francisco Alves de Andrade e Castro na Escola de Agronomia do Ceará. Foi ele o orador de sua turma, que teve como lema “Estudaremos o Nordeste”. Fiel a esta legenda, lembra nosso historiador Raimundo Girão, “ele realmente se dedicou ao estudo dos problemas nordestinos, dos quais, depois de Tomás Pompeu Sobrinho e José Guimarães Duque, se tornaria a grande autoridade”. Cientista e Humanista, formou-se também em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Ceará. Afirmou-se nele a ampla visão humanista.

Herdou Francisco Alves de Andrade e Castro dos seus avós, do clã dos Inhamuns, o amor à terra. Depois, a sua profunda vivência com os sofridos homens dos sertões, quando, demarcando terras, palmilhou estes chãos em contato com a problemática da vida regional, o fez tornar-se um dos cearenses que mais escreveu sobre o Nordeste.

Guiou-se esse homem de letras, cultura e humanismo telúrico, pelo pensamento e pela ação, no anseio do desenvolvimento por amplos caminhos. Estes o levaram, com dedicação e justiça, a procurar amenizar a vida do homem do campo.

Em 1942, casou-se Francisco Alves de Andrade e Castro. Sua mulher, nossa querida Mundinha, sempre se destacou por seu espírito de solidariedade, força de liderança e amor a todos os seus familiares e amigos. No seu livro, lançado em novembro de 2001, no Ideal Clube, com o título – “Antes que eu me esqueça”, ela registra seu mundo, vivido com respeito e dedicação, junto ao marido e seus quatro filhos: Raimundo Régis – agrônomo e professor universitário como foi seu pai, Tereza Cristina: a única filha do casal, formada em Letras e Pedagogia na Universidade Federal do Ceará. Pedro José e Paulo Alexandre, ambos médicos.

Francisco Alves de Andrade e Castro exerceu vários cargos e funções públicas, dentre os quais:

Diretor da Produção Animal da Secretaria de Viação e Obras Públicas do Ceará; Secretário da Agricultura do Ceará, em 1946; Delegado Federal do Ministério da Agricultura na década de 60, Chefe do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Ceará; Representante do Governo do Ceará no CODENO e, depois, na SUDENE; Chefe da Zona do Departamento de Terras e Colonização, da Secretaria de Agricultura do Ceará; Professor Catedrático de Zootecnia Especializada da Escola de Agronomia da Universidade Federal do Ceará.

Recebeu os títulos de Professor Emérito, da Universidade Federal do Ceará, e de Professor Honoris Causa, da Escola Superior de Agricultura de Mossoró, Rio Grande do Norte.

Foram-lhe concedidas a Medalha do Mérito Agronômico do Brasil, outorgada pela Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil e a Medalha Justiniano de Serpa, do Estado do Ceará.

Foi membro do Instituto do Ceará e da Sociedade Brasileira de Zootecnia Suas principais obras publicadas são: As Possibilidades de Desenvolvimento e Melhoria dos Recursos de Gado Bovino no Ceará em 1942, A Escola Rural e a Pecuária (1946), O Pioneiro do Folclore no Nordeste do Brasil (1949), estudo sobre Juvenal Galeno; Estudos de Zootecnia Regional (1949), Tomás Pompeu e seu Tempo (1954), A Pecuária e o Crédito no Polígono das Secas (1955), A Reforma Agrária no Polígono das Secas (1959), Cerâmica Utilitária de Cascavel (1959), Agronomia e Desenvolvimento do Nordeste (1960), O Presbítero e os Sertões (1976), Ildefonso Albano e outros Temas (1985) e Saga dos Sertões de Mombaça (1987).

Seu livro Agronomia e Humanismo, uma de suas obras principais no campo da ciência, conquistou o Prêmio Clóvis Beviláqua, da Universidade Federal do Ceará. São muitos os estudos que fez estampar em periódicos, mas podemos destacar “Como nasceu a indústria da oiticica no Ceará”, na revista Nordeste Econômico e Financeiro de 1948; a “Saudação a Guimarães Duque”, na Revista do Instituto do Ceará de 1953, bem como o prefácio que escreveu para a edição de 1965 das Lendas e Canções Populares de Juvenal Galeno. Organizou o livro “Renato Braga – In Memoriam (1967)”.

São de Francisco Alves de Andrade e Castro os versos: “In Aeternum”, feitos em homenagem ao seu mestre e amigo-irmão, ‘Renato Braga, que certo dia a ele confessou: “- Chico Alves, quando eu morrer gostaria que plantassem uma árvore, sobre a terra onde estarei”.

In Aeternum
Quando eu morrer
e voltar ao seio da terra amiga,
não quero túmulo,
nem epitáfios em lousa fria…
Plantem uma árvore sobre o meu jazigo!
E que as cinzas do meu corpo
sirvam a suas raízes de alimento!
E tudo o que era sangue,
correndo pelas veias,
batendo nas artérias,
reviva em seiva!
Que a poeira dos sonhos desfeitos,
na aderência das lágrimas e humo,
forme solo fecundo
à exaltação da vida…
E homem que fui,
árvore que serei
da matéria vencida,
hei de crescer para o alto!
E buscando sempre o sol,
Bebendo a intensa luz,
Estenderei meus ramos,
Sorrindo para o azul infinito!
E todo o antigo amor,
ressurgindo das entranhas
do velho coração já morto,
subirá pelo tronco à fronde,
onde desabrocharão flores,
de onde penderão frutos…

 

Exalto, com respeito, sua memória. Reverencio o homem erudito, enfim, essa figura humana tão plena de amor por sua terra. Sua obra é referência fundamental a quem quiser conhecer as virtudes e lutas do homem nordestino. Foi um precioso tempo esse em que me debrucei sobre a obra Francisco Alves de Andrade e Castro, sobretudo por seu sentido humanista, a envolver, em um vínculo sagrado, homem e sertão”

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